O diário de Marina

Não foi por acaso. Beatriz rastreava cada movimento de Marina. Tanto que no dia em que a viu, em carne e osso, sentiu o ímpeto de cumprimentar. Talvez no banheiro, quando fossem retocar a maquiagem. Beatriz sentiria-se um tanto quanto sórdida se o fizesse, uma espécie de personagem assustador interpretado por Glenn Close.

Não havia razão para olhar Marina daquele jeito de cima a baixo, atitude que destava que fizessem com ela. E Marina era jovem, bonita; dançava e estava visivelmente alegre. Dias depois, não haveria aquele sorriso. Não foi culpa de Beatriz, que agora, por ironia, desejava se aproximar de Marina por outros motivos.

Essa história termina com a leitura dos desabafos de uma estranha e começa com Marcos. Ele não pode ser considerado um sujeito bonito, ainda que ambas tivessem se encantado por ele. Beatriz adorava acariciar-lhe os cabelos. Já Marina fixou-se no segredo daqueles olhos.

De um jeito aparentemente displicente, ele sabia escolher o elogio, a trilha musical e a parte do corpo de cada uma para beijar. À Beatriz pegou emprestado um poema, colocou Nina Simone no toca-discos e, na sequência, sem a suavidade de instantes atrás, arrancou-lhe o sutiã. A primeira noite dos dois parecia não ter fim. À Marina presentou com chocolates e uma coletânea de Chico Buarque especialmente escolhida para ela. Dormiram abraçados, tomaram café da manhã juntos.

Marcos deixou Beatriz sozinha, na porta do cinema. Ela o esperou até o início da sessão. Ligou para ele algumas vezes e, sem resposta, decidiu ver um drama indigesto. Saiu dali querendo desaparecer. Mais ainda: precisava de uma justificativa. Ao menos, ele teve a coragem de terminar com Marina, dizer adeus. Beatriz foi meio que jamais.

Beatriz jura que ouviu alguma promessa. Era seu coração vagabundo que não se cansava de ter esperança e, eventualmente, pensava ser tudo uma grande invenção. Quem sabe Marcos nunca tivesse existido? No fundo, ela exigia resposta. Não se esquecia do fim de tarde em que cedeu lugar na fila da bilheteria para várias pessoas enquanto ele não vinha. Uma sensação estranha que voltava na madrugada, em sonhos. Estava ela numa caverna, só ouvia ecos.

Marina chegou a ostentar a condição de namorada, escutou "eu te amo" como se fosse "Sinfonia de Paris" e tinha a certeza que envelheceria ao lado de Marcos. Não economizou em carinhos, lingeries coloridas e até aprendeu a fazer panquecas cobertas de mel para acordá-lo aos domingos.

E Marcos? Marcos era só o caos, que atravessou a vida das duas e fez o diário de Marina cair nas mãos de Beatriz.

Beatriz nunca teve raiva de Marina. Quando soube que Marcos estava namorando, ficou magoada claro, porém, bastante intrigada. "Ele não queria nada sério comigo", pensou. Reviu diversos filmes bobos de amor e percebeu que boba era ela, que sua vida não seria um roteiro de Nancy Meyers. Naquela altura, seguia seu script: saiu, inclusive, com um ou dois caras. No entanto, Marcos era incômodo. Ela evitava todo e qualquer lugar que pudesse esbarrar com ele.

O que Marina era para Beatriz? A necessidade infantil de saber o que ela tinha de mais. Marina era mais nova, cultivava uma euforia dos iniciantes. Beatriz se considerava ponderada, só que Marcos foi seu incalculado equívoco. De maneiras extremamente distintas, eram mulheres interessantes, inteligentes e, não fosse aquele caos, descobririam uma série de afinidades.

Quando tirou o diário de Marina da bolsa, Beatriz não sabia o que estava acontecendo. Os relatos partiam de um arremedo de gente, com os sonhos dilacerados. Fechou o caderno rapidamente, com uma tristeza familiar.

Voltou para as linhas depois de beber duas taças de vinho. Decidiu ler de trás para frente afim de juntar peças, de tentar entender o que houve com Marina e o que houve com ela mesma. Marcos seguia como um mistério.

O namoro foi breve, de emoções intensas com as quais ele não soube lidar. Marina foi das nuvens ao inferno de não querer levantar da cama, comer ou sair de casa. Do namorado lindo, dedicado e sensacional, ele passou a gélido e covarde. "Covarde", Beatriz leu em voz alta. Concordava em gênero, número e grau. Estava com ódio de Marcos. Não sentiu isso antes porque até então era do tipo que alimentava uma ancestral resignação.

Beatriz agora conhecia a vida da outra. Queria chamar Marina para tomar um café, dar conselhos que daria para uma irmã. Sabia que Marina encontraria alguém realmente especial, com coragem e não é porque é o tipo de coisa que se diz após um tombo. Beatriz sabia disso...só não sabia como devolver o diário para a dona.

E que tipo de pessoa larga seu caderno de emoções inconfessáveis na mesa de um bar? Mesmo tomando aquele porre, com uma dose sutil de vexame. Para Beatriz era inconcebível: ela nunca esquecia nada para trás. Tinha listas infindáveis para todas as ocasiões.

Não devia ter ido sorrateiramente pegar o objeto esquecido. E agora? Se entregasse o diário no estabelecimento, seria questionada. Caso deixasse jogado na mesa, como se ele tivesse surgido num passe de mágica, poderia ser pega. Cogitou ligar para Marcos. Um desatino. Como ela diria para ele: "estou com o diário da sua ex namorada"? Insensatez, confissão de toda uma energia gasta para se chegar até Marina e a troco de quê? Já nem sabia. Beatriz não queria Marcos de volta e torcia para que essa vontade parasse de corroer Marina.

Nem correio, nem motoboy. Seria tão mais fácil se a dona do diário preenchesse um endereço ou tefone de contato. Jogar no lixo não era alternativa, de modo que optou por guardar aquele caderninho vermelho, escrito com letrinhas arredondadas, na última gaveta da cômoda, aquela que mal abria em seu dia-a-dia. Amanhã saberia o que fazer.

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