Um pouco do ponto de vista do outro (neste caso, o meu também)

Sub Solo 1 - por Antonio Prata

“Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não uma solução”.Os versos de Drummond me desabaram na cabeça assim que saí do elevador no andar errado, num prédio da Berrini, e dei com um piso inteiro de restaurantes; uma praça de alimentação submersa em toneladas de concreto, no centro empresarial de São Paulo.

Então assim é o mundo – pensei -, é aqui que estão as pessoas normais. As pessoas que têm emprego, FGTS, crachás, férias remuneradas, chefes que admiram e/ou detestam, colegas com quem competem e se comprazem, horário de almoço e happy hour, todo mundo, enfim, que sai de casa toda manhã para trabalhar num escritório, em vez de caminhar, só, em direção a uma edícula, no fundo do quintal.

Eu leio sobre o mundo com frequência, nos jornais. De vez em quando, leio livros sobre o mundo. Pensando bem, estudei o mundo por cinco anos, na faculdade de ciências sociais, mas raramente vou até ele, e precisei do choque daquela praça de alimentação submersa para dar-me conta de quão distante nós estávamos – eu e o mundo. Para um escritor, poucas constatações podem ser mais trágicas.

Posso me acabar de ler Shakespeare, Dostoievski, Kafka e Goethe, mas os verdadeiros Macbeths, Ivans Karamazovs, Gregors Sansas e Faustos estão entre as máquinas de café e os scanners, tiram fotinhos na portaria e alimentam as catracas com seus crachás; nos vinte andares acima daquelas bandejas, todo dia, sonhos medram ou murcham, homens competem, traem, fofocas são discretamente difundidas, alguém entregará o que tem de mais precioso em nome de uma causa; a glória e o fiasco espocam, das oito da manhã às seis da tarde. Como posso querer ser um escritor se só trato com o Ser Humano por e-mail? Se só o vejo amistoso e calmo, no cinema ou num restaurante, no fim de semana?

Voltei ao elevador decidido a raspar essa barbicha calculadamente desleixada - meu crachá de escritor, que pretende dizer, ingenuamente, “não faço parte do mundo” - e arrumar um emprego na Berrini. Pode ser de quinto auxiliar de almoxarifado ou sub-analista de cafezinho, não importa. Só preciso ter acesso ao coração do mundo. Uma vez ali dentro, ouvirei as moças falando mal do chefe na fila do Subway, descobrirei o que planejam os jovens de terno na mesa do Súbito, verei a felicidade do garoto do interior que acabou de ser contratado e o ódio de seu vizinho de baia, que não foi. Depois, e só depois, poderei voltar para minha edícula e tentar escrever algo que preste. Algo que, um dia, espero, chegue aos pés do último verso do poema de Drummond: “Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é meu coração”.

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