Mais uma da série "just like me"
A Gaveta - por Antônio Prata
(publicado no Estadão)
O ano vai chegando ao fim e decido arrumar a gaveta. Há várias gavetas em minha casa, evidentemente, mas refiro-me a uma em especial, onde há um tempo eu guardo os documentos, recibos, comprovantes de carta registrada, esses papéis fugidios que, como toda pessoa desorganizada, temo precisar um dia e não encontrar: “a geladeira pegou fogo no dia que instalaram, mas pergunta se ele tinha recibo?”. “Fraudaram um cheque de treze reais e agora tá devendo cento e trinta mil ao banco. Tivesse guardado os canhotos...”. “Lembra do Antonio? A Receita apareceu com o exército, perguntando pela página dois da declaração de 1998. Não achou. Parece que tá lá em Guantánamo, aguardando julgamento”. Agora, quando surgem esses pensamentos, lembro-me que em meio à barafunda que é minha casa, ao caos cartorial e burocrático que é minha vida, há esse cercadinho de juízo e precaução, zelando por meu sono: a gaveta.
Acontece que com os anos os papéis foram se acumulando e a gaveta tornou-se, ela também, um inferninho. Quase não fecha de tão abarrotada, na última eleição levei meia hora para achar o título de eleitor e começo a temer que se os homens de preto interfonarem, não encontrarei a página dois da declaração de 1998 antes que subam as escadas e derrubem a porta. O ano termina e, num ato de fé e otimismo, digno do mês de dezembro, decido arrumá-la.
De início não encontro dificuldades: contratos aqui, recibos ali, essas pragas azuis e amarelas do redeshop vão pro lixo... Vou fazendo pilhas temáticas, imagino pastas coloridas e etiquetadas, em 2009 cada coisa terá seu lugar, tudo será facilmente localizável, a vida parece simples, penso até em começar uma natação.
Aos poucos, no entanto, surgem os problemas -- se os armários escondem esqueletos, caro leitor, as gavetas também guardam seus ossinhos: esse cartão postal, eu respondi? Tenho que mandar a cópia do PIS para o SESC. O IPVA... Céus, não paguei o IPVA. A pilha das pendências vai crescendo, crescendo, então desaba sobre mim. Pastas não darão conta do recado: não é a gaveta que precisa ser organizada, é a vida. Preciso ganhar mais dinheiro. Preciso acabar meu romance. Ver mais os amigos e pagar a conta de luz. Preciso estabelecer prioridades, metas. E cumpri-las, claro. Preciso de uma secretária. Não, não, de uma analista. Perder uns quilos não seria má idéia. E se eu fizesse abdominais? Preciso ler Proust. Do alto da pirâmide de papel, trinta e um anos me contemplam: afinal, Antonio, o que você quer da vida?
Desisto. Não adianta. A gente faz o que pode. É tarde. Sou isso aí, o conteúdo da gaveta e o que está fora dela. Paciência. Guardo tudo de volta. Dois mil e nove que venha. Semana que vem compro um baú. E fim de papo.
(publicado no Estadão)
O ano vai chegando ao fim e decido arrumar a gaveta. Há várias gavetas em minha casa, evidentemente, mas refiro-me a uma em especial, onde há um tempo eu guardo os documentos, recibos, comprovantes de carta registrada, esses papéis fugidios que, como toda pessoa desorganizada, temo precisar um dia e não encontrar: “a geladeira pegou fogo no dia que instalaram, mas pergunta se ele tinha recibo?”. “Fraudaram um cheque de treze reais e agora tá devendo cento e trinta mil ao banco. Tivesse guardado os canhotos...”. “Lembra do Antonio? A Receita apareceu com o exército, perguntando pela página dois da declaração de 1998. Não achou. Parece que tá lá em Guantánamo, aguardando julgamento”. Agora, quando surgem esses pensamentos, lembro-me que em meio à barafunda que é minha casa, ao caos cartorial e burocrático que é minha vida, há esse cercadinho de juízo e precaução, zelando por meu sono: a gaveta.
Acontece que com os anos os papéis foram se acumulando e a gaveta tornou-se, ela também, um inferninho. Quase não fecha de tão abarrotada, na última eleição levei meia hora para achar o título de eleitor e começo a temer que se os homens de preto interfonarem, não encontrarei a página dois da declaração de 1998 antes que subam as escadas e derrubem a porta. O ano termina e, num ato de fé e otimismo, digno do mês de dezembro, decido arrumá-la.
De início não encontro dificuldades: contratos aqui, recibos ali, essas pragas azuis e amarelas do redeshop vão pro lixo... Vou fazendo pilhas temáticas, imagino pastas coloridas e etiquetadas, em 2009 cada coisa terá seu lugar, tudo será facilmente localizável, a vida parece simples, penso até em começar uma natação.
Aos poucos, no entanto, surgem os problemas -- se os armários escondem esqueletos, caro leitor, as gavetas também guardam seus ossinhos: esse cartão postal, eu respondi? Tenho que mandar a cópia do PIS para o SESC. O IPVA... Céus, não paguei o IPVA. A pilha das pendências vai crescendo, crescendo, então desaba sobre mim. Pastas não darão conta do recado: não é a gaveta que precisa ser organizada, é a vida. Preciso ganhar mais dinheiro. Preciso acabar meu romance. Ver mais os amigos e pagar a conta de luz. Preciso estabelecer prioridades, metas. E cumpri-las, claro. Preciso de uma secretária. Não, não, de uma analista. Perder uns quilos não seria má idéia. E se eu fizesse abdominais? Preciso ler Proust. Do alto da pirâmide de papel, trinta e um anos me contemplam: afinal, Antonio, o que você quer da vida?
Desisto. Não adianta. A gente faz o que pode. É tarde. Sou isso aí, o conteúdo da gaveta e o que está fora dela. Paciência. Guardo tudo de volta. Dois mil e nove que venha. Semana que vem compro um baú. E fim de papo.
Comentários
Postar um comentário