Algo para se concordar
CONTARDO CALLIGARIS
Comoção pela morte de Isabella
A tragédia nos lembra afetos dolorosos que regram nossa maneira "moderna" de casar
HOJE, QUARTA-FEIRA, quando acabo esta coluna, não conhecemos os eventos que levaram à morte de Isabella Nardoni; só sabemos que a menina, de cinco anos, foi assassinada, intencionalmente ou não, enquanto estava na custódia do pai e da madrasta. E conhecemos um pouco a história da família: a mãe e o pai de Isabella não chegaram a se juntar -foi um romance adolescente que acabou antes de Isabella nascer. O pai tem dois filhos pequenos com sua mulher atual.
É uma situação trivial: a pensão mensal, as visitas, o padrasto ou a madrasta, os meio-irmãos etc. Mas a banalidade dessa situação não deveria disfarçar o emaranhado de afetos dolorosos que ela produz -afetos que muitos vivem e que todos preferimos esquecer.
Não sei se esses afetos são responsáveis pela morte de Isabella. Mas talvez eles sejam responsáveis pela extraordinária comoção produzida pela sua morte. Como assim?
A morte violenta de uma criança nos fere a todos: é como se, ao mesmo tempo, alguém nos arrancasse um pedaço de nosso próprio futuro e destruísse a fantasia nostálgica da infância, que sempre cultivamos, mesmo que o primeiro período de nossa vida tenha sido infeliz.
Mas a história de Isabella nos comove também por outra razão: as tentativas de "explicar" o acontecido evocam, inevitavelmente, as dificuldades de nossa maneira "moderna" de casar.
São dificuldades nas quais, em geral, preferimos evitar de pensar.
É comum que o marido ou a mulher (às vezes, ambos) levem para o casamento filhos que são frutos de uma relação anterior. Espera-se que isso aconteça sem complicação: afinal, se descasamos e casamos por amor, por que o mesmo amor não reinaria pelo lar todo? Pois é, o amor é uma coisa complicada. Exemplos.
A rivalidade, que sempre existe entre irmãos, vinga entre enteados e meio-irmãos. E vinga redobrada, justamente por ser mais inconfessável do que a rivalidade entre irmãos -por ser silenciosa, reprimida pelo esforço geral de compor uma nova família ideal, em que todos os integrantes se amariam.
Na nova família, à primeira vista, o homem convive com seus enteados melhor do que a mulher. Não é nenhum milagre do "instinto" paterno: o homem encontra uma satisfação narcisista no exercício da paternidade. Ele, aliás, curte ser e se sentir amado por suas qualidades "paternas". Pare ele, saber ser pai de filhos e enteados faz parte de uma virilidade que ele quer que seja reconhecida e festejada pela mulher.
Mas cuidado: a encenação da paternidade, embora às vezes espalhafatosa, não resiste à pressão da culpa de dar para seus filhos de sangue menos do que para seus enteados.
Essa culpa, envergonhada e reprimida, é inevitável, porque há uma coisa que o homem, na grande maioria dos casos, dá mais aos enteados do que aos filhos: sua própria presença no lar.
A mulher, ao contrário, vive quase sempre uma rivalidade dramática com seus enteados: compete com eles como se ela fosse mais uma filha. Para a mulher, o enteado ou a enteada não usurpam o lugar dos filhos que ela trouxe de um casamento anterior, nem o lugar dos filhos que nasceram no novo casamento: eles ameaçam usurpar o próprio lugar dela. Essa rivalidade, escondida, expressa-se de maneiras travessas: por exemplo, numa crítica assídua das manifestações do afeto paterno do homem para com o filho ou a filha dele. Ou seja, para não admitir um ciúme envergonhado do enteado, a mulher censura o "excesso" dos sentimentos paternos do marido. Esse, criticado como pai, sente-se diminuído como homem. O desastre está às portas.
São apenas exemplos. O casamento "moderno" é um nó de afetos reprimidos, uma convivência explosiva que aposta no amor do casal como se fosse remédio para todos os males.
Não se trata de condenar a idéia de que seja possível refazer sua vida com outro ou outra e, nessa ocasião, levar consigo os filhos dos casamentos anteriores. Mas seria melhor que a gente se engajasse nesses projetos sem a ilusão de que os bons sentimentos prevalecerão por conta própria. Seria melhor, para começar, que nossas disposições menos nobres, em vez de silenciadas e reprimidas, fossem faladas, explicitadas. Isso, para evitar que, de vez em quando, a trágica morte de uma menina nos lembre, por um dia ou uma semana, que a vida das famílias "modernas" é muito mais difícil do que parece.
Comoção pela morte de Isabella
A tragédia nos lembra afetos dolorosos que regram nossa maneira "moderna" de casar
HOJE, QUARTA-FEIRA, quando acabo esta coluna, não conhecemos os eventos que levaram à morte de Isabella Nardoni; só sabemos que a menina, de cinco anos, foi assassinada, intencionalmente ou não, enquanto estava na custódia do pai e da madrasta. E conhecemos um pouco a história da família: a mãe e o pai de Isabella não chegaram a se juntar -foi um romance adolescente que acabou antes de Isabella nascer. O pai tem dois filhos pequenos com sua mulher atual.
É uma situação trivial: a pensão mensal, as visitas, o padrasto ou a madrasta, os meio-irmãos etc. Mas a banalidade dessa situação não deveria disfarçar o emaranhado de afetos dolorosos que ela produz -afetos que muitos vivem e que todos preferimos esquecer.
Não sei se esses afetos são responsáveis pela morte de Isabella. Mas talvez eles sejam responsáveis pela extraordinária comoção produzida pela sua morte. Como assim?
A morte violenta de uma criança nos fere a todos: é como se, ao mesmo tempo, alguém nos arrancasse um pedaço de nosso próprio futuro e destruísse a fantasia nostálgica da infância, que sempre cultivamos, mesmo que o primeiro período de nossa vida tenha sido infeliz.
Mas a história de Isabella nos comove também por outra razão: as tentativas de "explicar" o acontecido evocam, inevitavelmente, as dificuldades de nossa maneira "moderna" de casar.
São dificuldades nas quais, em geral, preferimos evitar de pensar.
É comum que o marido ou a mulher (às vezes, ambos) levem para o casamento filhos que são frutos de uma relação anterior. Espera-se que isso aconteça sem complicação: afinal, se descasamos e casamos por amor, por que o mesmo amor não reinaria pelo lar todo? Pois é, o amor é uma coisa complicada. Exemplos.
A rivalidade, que sempre existe entre irmãos, vinga entre enteados e meio-irmãos. E vinga redobrada, justamente por ser mais inconfessável do que a rivalidade entre irmãos -por ser silenciosa, reprimida pelo esforço geral de compor uma nova família ideal, em que todos os integrantes se amariam.
Na nova família, à primeira vista, o homem convive com seus enteados melhor do que a mulher. Não é nenhum milagre do "instinto" paterno: o homem encontra uma satisfação narcisista no exercício da paternidade. Ele, aliás, curte ser e se sentir amado por suas qualidades "paternas". Pare ele, saber ser pai de filhos e enteados faz parte de uma virilidade que ele quer que seja reconhecida e festejada pela mulher.
Mas cuidado: a encenação da paternidade, embora às vezes espalhafatosa, não resiste à pressão da culpa de dar para seus filhos de sangue menos do que para seus enteados.
Essa culpa, envergonhada e reprimida, é inevitável, porque há uma coisa que o homem, na grande maioria dos casos, dá mais aos enteados do que aos filhos: sua própria presença no lar.
A mulher, ao contrário, vive quase sempre uma rivalidade dramática com seus enteados: compete com eles como se ela fosse mais uma filha. Para a mulher, o enteado ou a enteada não usurpam o lugar dos filhos que ela trouxe de um casamento anterior, nem o lugar dos filhos que nasceram no novo casamento: eles ameaçam usurpar o próprio lugar dela. Essa rivalidade, escondida, expressa-se de maneiras travessas: por exemplo, numa crítica assídua das manifestações do afeto paterno do homem para com o filho ou a filha dele. Ou seja, para não admitir um ciúme envergonhado do enteado, a mulher censura o "excesso" dos sentimentos paternos do marido. Esse, criticado como pai, sente-se diminuído como homem. O desastre está às portas.
São apenas exemplos. O casamento "moderno" é um nó de afetos reprimidos, uma convivência explosiva que aposta no amor do casal como se fosse remédio para todos os males.
Não se trata de condenar a idéia de que seja possível refazer sua vida com outro ou outra e, nessa ocasião, levar consigo os filhos dos casamentos anteriores. Mas seria melhor que a gente se engajasse nesses projetos sem a ilusão de que os bons sentimentos prevalecerão por conta própria. Seria melhor, para começar, que nossas disposições menos nobres, em vez de silenciadas e reprimidas, fossem faladas, explicitadas. Isso, para evitar que, de vez em quando, a trágica morte de uma menina nos lembre, por um dia ou uma semana, que a vida das famílias "modernas" é muito mais difícil do que parece.
É muito sério isso! Porque quando esse tipo de relação começa, em geral, as crianças não têm oportunidae de escolher. Portanto, toda a responsabilidade das opções feitas é mesmo dos pais. E deles também deve vir a iniciativa de estabelecer as bases da nova família: direitos, deveres e espaço de cada um.
ResponderExcluirNo meu caso, passei anos reduzida, em casa, ao meu quarto de portas fechadas. Por isso o post mexeu tanto comigo e resolvi comentar... Casos como esse talvez devam, no mínimo, fazer-nos pensar mais vezes antes de tomar as grandes decisões da vida, como casar, separar e casar pela segunda vez. Parece-me que as pessoas têm feito isso sem ponderar, realmente, na gavidade das escolhas.
Achei seu link na página do João, que costumo visitar.
Abraço!