Maria

Prólogo: Resolvi contar a história de Maria por aqui depois de ler o resultado da pesquisa do Think Olga. O site foi idealizado pela Juliana De Faria, com quem trabalhei no Jornal da Tarde, em São Paulo. A Ju era estagiária naqueles tempos, mas meu faro certeiro sempre deu conta de que ela viraria uma grande profissional. E foi o que aconteceu.

Maria autorizou que eu publicasse aqui o porquê de ela não querer saber de fiu fiu quando anda pelas ruas. Eu sou como Maria. Imagino que a maioria das mulheres seja.

A história.

Maria tinha medo de andar nas ruas à noite. Também não gostava de passar por becos ou lugares sombrios. Não era medo de assalto. Ela teria esse medo se morasse numa cidadezinha de poucos habitantes, pois entre eles estariam os homens.

Maria tinha 12 anos quando aconteceu pela primeira vez. Ela estava deitada na sala de televisão assistindo a desenhos. Fazia calor, ela usava um vestido curto. Como parte da geração "meu primeiro sutiã" da Valisére, ela mal tinha peito, no entanto, usava seu modelo branco que a mãe lhe deu de presente, a exemplo de todas as meninas da classe. 

Achou estranho o barulho que vinha da casa ao lado, uma oficina. Resolveu olhar da janela. Saiu correndo ao perceber que o mecânico que sempre a olhava de um jeito estranho quando passava pelas ruas estava de calças arriadas. 

Ficou quieta o dia inteiro. Quis contar para a empregada, para os pais. Os dias se passaram. Ela dava a volta no quarteirão para entrar em casa, evitando passar na porta da tal oficina. Via desenhos com as cortinas fechadas. 

Por anos, apagou aquela imagem de sua memória. Achou que um episódio assim, jamais se repetiria.

Maria completou 16 anos. Gostava de futebol, ia ao estádio com o pai. Vestia-se como um garoto às ocasiões: calça jeans, tênis e a camiseta do clube. Mesmo assim, ao passar no meio da multidão, sentiu uma mão apertando sua bunda com força. O homem desapareceu. Ainda que dessa vez tenha contado para o pai, foi inútil.

Parou de ir ao campo.

Maria passou no vestibular. Não se aguentava de felicidade. O curso era noturno. A mãe achava perigoso ela voltar sozinha de ônibus. O pai argumentava que, em algum momento, ela teria que enfrentar os perigos da vida. Como não havia celular naqueles tempos, o combinado era que se alguma aula se prolongasse, ela deveria ligar para o pai buscá-la.

Rapidamente, Maria arrumou uma turma de amigos que pegava a mesma condução. Mas foi justamente no dia em que Renato faltou que ela correu desesperada pelas ruas do bairro. 

Eram onze horas. Desceu do ônibus e seguiu pela parte iluminada da rua. Andaria três quarteirões apenas. Foi quando ouviu passos atrás. Olhou de relance, acelerou o movimento. O sujeito, então, começou a chamá-la de gostosa, descrever tudo o que faria com ela assim que lhe arrancasse a roupa.

Correu, correu como nunca. Imaginou tantas coisas, como uma bala lhe atravessando as costelas. Na porta do prédio, não achava as chaves. Chorou, jogou tudo que havia na mochila no chão. Entrou em casa, contou para a mãe. Ligou para o pai, que já não morava com elas.

Nas semanas que se seguiram, o pai a esperava no ponto de ônibus. Era horrível, mas era bom conversar com ele, contar como foi o dia, assim como era quando era criança.

Maria mudou-se, arrumou uma carona que a deixava na porta de casa.

Ela já havia se formado quando aconteceu pela última vez. Era uma festa fora da cidade, todos riam e bebiam. Fernando se aproximou. Não era bonito, mas tinha algo de atraente que não sabia explicar. Conversaram a noite inteira, começaram a se beijar. Maria estava exausta, embriagada e disse a ele que retornaria à pousada. Fernando fez questão de acompanhá-la. Foram de mãos dadas. 

Na despedida, ele disse que queria ficar um pouco mais, insistiu para que ela fosse até o quarto dele. Não que Maria fosse bobinha e inexperiente. Um lado dela até pensou em não resistir ao charme de Fernando.

Quis que aquele beijo prolongado fosse a despedida. Subitamente, ele segurou forte em sua cintura, foi a empurrando para um cômodo vazio. Maria pediu que Fernando parasse, queria ir embora.

Percebeu que ele ficou agressivo e tentava rasgar sua calcinha. Não tinha forças, estava apavorada. Foi quando veio o grito "socorro" uma, duas vezes bem baixinho, tão baixo que nem ele ouviu. Na terceira, o tom era grave. Ouviram um barulho no corredor. Fernando a soltou e disse: você queria, só estava fazendo charme.

Não dormiu. Passou a madrugada observando a porta, imaginando que ele voltaria, que conseguiria o que não conseguiu.

Quando amanheceu, ficou mais de uma hora no chuveiro. Percebeu hematomas nas coxas. 

Sentia pavor, nojo e culpa: por que ele achava que ela queria, quando disse na festa que iria embora?

Encontrou com Fernando no café da manhã, que a chamou de gatinha. 

Não conseguiu comer.

Vomitou quando foi buscar sua mala no quarto. Vomitou até sangrar.

Contou para Daniela, a amiga que chegara na sequência, após uma madrugada animada em outro quarto. 

Dani perguntou se Maria queria registrar queixa. Maria não sabia se tentativa era crime. Desde que colocou o maldito primeiro sutiã, foram várias tentativas. Essa, de longe, a mais terrível.

De volta à cidade, ela que nem tinha religião, entrou numa igreja. 

Rezou e caiu em lágrimas.

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