Presente da amiga Carol
Briga de Cão e Gato
Por Fabrício Carpinejar
O gato é o melhor amigo do poeta brasileiro.
O cachorro antes era o preferido dos estros. Deixou a realeza para o felino. Talvez seja a mudança de hábito, a adoção do apartamento em detrimento da casa, a adoração do silêncio dos condomínios residenciais e dos escritórios na hora de escrever, sem o alvoroço dos quintais e dos pátios.
Não que a figura canina tenha desaparecido. Affonso Romano de Sant'Anna, em 'Textamentos" (Rocco, 1999), tece emocionada homenagem ao seu afinado cão, capaz de acompanhar o adágio da 6ª Sinfonia de Beethoven com o ritmo da respiração. O pernambucano Alberto da Cunha Melo (1942-2007) escreveu um de seus últimos livros dedicado a um cão de olhos amarelos, triste, soturno, sofrendo na calçada de um bar.
O que aconteceu é uma secreta revolução dos bichos. As patas perderam prestígio para as garras. Miados dominam o teclado e o mouse tem que se cuidar para não ser engolido.
A verdade é que o cão ficou trancado na máquina de escrever. Pode até permanecer como o dileto na memória dos ficcionistas (destaque para Baleia, de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos), mas não manda mais nos versos. Antigamente, até os anos 70, o cachorro funcionava como um alter ego confessional. Aparecia como personagem predileto de toda a geração 60 brasileira e de grande parte dos portugueses, de Fernando Pessoa a Ruy Belo. Mario Quintana o idealizava como um paranormal do lar, "o único que enxerga o vento" e percebe sua corrida pelas árvores. João Cabral de Melo Neto chegou a fazer todo um volume comparando os movimentos do rio Capibaribe de Recife a um cão sem plumas.
"O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão."
Houve uma variação da tipologia do poeta que abandonou o aspecto baldio de vira-lata e boêmio, do senhor do boteco e da rua, do uísque cão engarrafado celebrado por Vinícius de Moraes, para assumir o espaço doméstico, individualista e caseiro do escritório.
Os gatos são as novas beldades dos enigmas e das metáforas. Do Rio de Janeiro de Carlito Azevedo a Manaus de Aníbal Beça. Além de tomar a companhia da escrita, abocanharam a ração da bandeja.
Poetas jovens como Alice Sant'Anna, em Dobradura (7 Letras, 2008), extravasam a predileção com humor. Cria cinco tópicos com o título "O que sei sobre os gatos". É óbvio que ela cutuca os adversários de estimação, exercendo comparações de comportamento.
"Os cachorros mexem o rabo
quando estão felizes, os gatos mexem o rabo
quando estão nervosos: quando estão contentes
os gatos fazem barulho de motor
que se chama ronronar."
Ter um gato perto é quase uma escolha filosófica, uma postura reflexiva. Ganhou o eleitorado lírico pela sua independência e cotidiano autônomo. Por circular entre mundos. Pelas sete inesgotáveis vidas. Como parece que não está nem aí para o que está acontecendo, excita a meditação e os símbolos. O gato já é um poema naturalmente, inescrutável, dono de uma discrição absoluta. Facilita inúmeras interpretações.
A paulista Orides Fontela (1940-1998) demonstrava um fascínio pelas criaturas de bigodes, investigou seu domínio misterioso tanto em "Helianto" (1973) quanto em "Teia" (1996). Considerava o animal como um visitante, que não se entrega à submissão e ao controle. Tanto que gato não usa coleira, usa colar.
"na casa
o imperecível mito
se aconchega
quente (macio) ei-lo
em nossos braços"
O cachorro protege a residência, o gato protege a solidão. O cachorro mendiga afeto, o gato seduz com a distância. A sensação é que o cachorro é fofoqueiro, quer contar algo sempre, o gato já é um confidente, que escuta e guarda, protetor dos segredos. Nasceu com a batina no pêlo.
Assim como pode ser um gorducho preguiçoso, comilão de pizza, ilustrado pelo temperamento Garfield, pode ser um corajoso trapezista dos telhados. Concilia a dupla personalidade com perfeição. Sadiamente bi-polar. Em “Livro de Auras” (Iluminuras, 1994), Maria Lúcia Dal Farra tenta registrar sua rápida transformação, essa metamorfose súbita, a migrar de repente da maior inércia para elasticidade de um acrobata. Define o bichano como "um viveiro de alheios". Está com um olhar aqui, atento aos mínimos movimentos próximos, e outro acolá, em pensamentos longínquos.
Chacal, em sua antologia premiada "Belvedere" (Cosac Naify/7 Letras), traduz essa contemplação suficiente. Nem é bem um olhar, significa uma admiração.
"o gato lhe acompanha
onde quer que você vá
só com olhos - não é besta -
para ele basta olhar."
Os gatos são os filhos dos tigres de Jorge Luís Borges, netos dos tigres de William Blake. Herdaram a floresta, resíduos elegantes do mato. Sábios, professam sabedorias em fachada de esfinge.
Ensinam inclusive Ferreira Gullar. Em "Lição de um gato siamês", da obra "Muitas Vozes" (José Olympio, 1999), Gullar passa a entender que o tempo é eterno porque afetivo.
"Dura eternamente
enquanto vivo."
Ser professor de um dos maiores poetas da língua portuguesa não é qualquer coisa. É tarefa inspirada de musa.
Por Fabrício Carpinejar
O gato é o melhor amigo do poeta brasileiro.
O cachorro antes era o preferido dos estros. Deixou a realeza para o felino. Talvez seja a mudança de hábito, a adoção do apartamento em detrimento da casa, a adoração do silêncio dos condomínios residenciais e dos escritórios na hora de escrever, sem o alvoroço dos quintais e dos pátios.
Não que a figura canina tenha desaparecido. Affonso Romano de Sant'Anna, em 'Textamentos" (Rocco, 1999), tece emocionada homenagem ao seu afinado cão, capaz de acompanhar o adágio da 6ª Sinfonia de Beethoven com o ritmo da respiração. O pernambucano Alberto da Cunha Melo (1942-2007) escreveu um de seus últimos livros dedicado a um cão de olhos amarelos, triste, soturno, sofrendo na calçada de um bar.
O que aconteceu é uma secreta revolução dos bichos. As patas perderam prestígio para as garras. Miados dominam o teclado e o mouse tem que se cuidar para não ser engolido.
A verdade é que o cão ficou trancado na máquina de escrever. Pode até permanecer como o dileto na memória dos ficcionistas (destaque para Baleia, de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos), mas não manda mais nos versos. Antigamente, até os anos 70, o cachorro funcionava como um alter ego confessional. Aparecia como personagem predileto de toda a geração 60 brasileira e de grande parte dos portugueses, de Fernando Pessoa a Ruy Belo. Mario Quintana o idealizava como um paranormal do lar, "o único que enxerga o vento" e percebe sua corrida pelas árvores. João Cabral de Melo Neto chegou a fazer todo um volume comparando os movimentos do rio Capibaribe de Recife a um cão sem plumas.
"O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão."
Houve uma variação da tipologia do poeta que abandonou o aspecto baldio de vira-lata e boêmio, do senhor do boteco e da rua, do uísque cão engarrafado celebrado por Vinícius de Moraes, para assumir o espaço doméstico, individualista e caseiro do escritório.
Os gatos são as novas beldades dos enigmas e das metáforas. Do Rio de Janeiro de Carlito Azevedo a Manaus de Aníbal Beça. Além de tomar a companhia da escrita, abocanharam a ração da bandeja.
Poetas jovens como Alice Sant'Anna, em Dobradura (7 Letras, 2008), extravasam a predileção com humor. Cria cinco tópicos com o título "O que sei sobre os gatos". É óbvio que ela cutuca os adversários de estimação, exercendo comparações de comportamento.
"Os cachorros mexem o rabo
quando estão felizes, os gatos mexem o rabo
quando estão nervosos: quando estão contentes
os gatos fazem barulho de motor
que se chama ronronar."
Ter um gato perto é quase uma escolha filosófica, uma postura reflexiva. Ganhou o eleitorado lírico pela sua independência e cotidiano autônomo. Por circular entre mundos. Pelas sete inesgotáveis vidas. Como parece que não está nem aí para o que está acontecendo, excita a meditação e os símbolos. O gato já é um poema naturalmente, inescrutável, dono de uma discrição absoluta. Facilita inúmeras interpretações.
A paulista Orides Fontela (1940-1998) demonstrava um fascínio pelas criaturas de bigodes, investigou seu domínio misterioso tanto em "Helianto" (1973) quanto em "Teia" (1996). Considerava o animal como um visitante, que não se entrega à submissão e ao controle. Tanto que gato não usa coleira, usa colar.
"na casa
o imperecível mito
se aconchega
quente (macio) ei-lo
em nossos braços"
O cachorro protege a residência, o gato protege a solidão. O cachorro mendiga afeto, o gato seduz com a distância. A sensação é que o cachorro é fofoqueiro, quer contar algo sempre, o gato já é um confidente, que escuta e guarda, protetor dos segredos. Nasceu com a batina no pêlo.
Assim como pode ser um gorducho preguiçoso, comilão de pizza, ilustrado pelo temperamento Garfield, pode ser um corajoso trapezista dos telhados. Concilia a dupla personalidade com perfeição. Sadiamente bi-polar. Em “Livro de Auras” (Iluminuras, 1994), Maria Lúcia Dal Farra tenta registrar sua rápida transformação, essa metamorfose súbita, a migrar de repente da maior inércia para elasticidade de um acrobata. Define o bichano como "um viveiro de alheios". Está com um olhar aqui, atento aos mínimos movimentos próximos, e outro acolá, em pensamentos longínquos.
Chacal, em sua antologia premiada "Belvedere" (Cosac Naify/7 Letras), traduz essa contemplação suficiente. Nem é bem um olhar, significa uma admiração.
"o gato lhe acompanha
onde quer que você vá
só com olhos - não é besta -
para ele basta olhar."
Os gatos são os filhos dos tigres de Jorge Luís Borges, netos dos tigres de William Blake. Herdaram a floresta, resíduos elegantes do mato. Sábios, professam sabedorias em fachada de esfinge.
Ensinam inclusive Ferreira Gullar. Em "Lição de um gato siamês", da obra "Muitas Vozes" (José Olympio, 1999), Gullar passa a entender que o tempo é eterno porque afetivo.
"Dura eternamente
enquanto vivo."
Ser professor de um dos maiores poetas da língua portuguesa não é qualquer coisa. É tarefa inspirada de musa.
êba, adoro ver meu nome no título das coisas, hahahhaha.
ResponderExcluirachei o texto a sua cara.
bjos, lindona!
:) adorei o presente honey!
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