Remoendo

E se estivesse até agora contemplando o céu sem estrelas? Ainda haveria uma ponta de irritação com pequenas coisas, como a buzina dos motoboys, o teto bolorento que se formava no banheiro e o eterno olhar de reprovação do porteiro.

E se estivesse até agora naquele trajeto do microonibus? Ainda prestaria atenção nas notícias e músicas que tocam no rádio do motorista, tentaria ler ou ouvir a própria seleção do MP3 player, cuja pilha acabava antes do final do percurso. Mesmo que tentasse, não ignoraria a conversa alheia.

Impossível saber se estaria recebendo o mesmo salário de fome, se continuaria vendendo os livros que ganhava em sebos para pagar uma conta aqui e outra acolá, se dividiria o apartamento por mais tempo ou alugaria um quarto e sala.

Talvez o amor não quisesse mais esperar ou as saudades sufocassem. Ficaria, então, uma dor maior que essa. Quem sabe o gosto de cabo de vassoura na boca (por conta de tanta ingerência, grosseria e displicência), a sensação de que a possibilidade ter ido mais longe no que planejei foi perdida e a incapacidade de readaptação ao próprio meio sejam meramente transitórias? Haverá ainda a lembrança, como a daqueles tempos, de outras compensações.

Comentários

Postagens mais visitadas