Natal em novembro
De Nelson Botter.


Você, que está a ler o Blônicas neste exato momento, me responde rápido: existe frase mais manjada pra se falar em novembro do que "Nossa, já tá chegando o natal! Putz, acabou o ano!". Entonces, é nessas e outras que aposto um milhão como você já soltou a dita frase nas últimas semanas. Viu? Eu disse. OK, OK, o que isso tem a ver? Bem, essa introdução meio estranha nada mais é do que uma explicação do por que vou falar sobre o natal hoje, mesmo ainda faltando um mês para essa data.

Sim, é um pouco de ansiedade também, admito. E o mais interessante é que estudo e aplico vários macetes para amenizar a ansiedade. Mas a ansiedade dos outros, pois a minha não sei o que acontece, nunca consigo controlar. Você até pode achar isso engraçado, pois bem, eu perco a carreira, mas não perco a piada. Eu nem era tão ansioso, mas de uns tempos pra cá a coisa começou a piorar, a ganhar níveis altos e incontroláveis, a ponto de já haver comprado alguns presentinhos de natal antes de entrarmos em dezembro. Você pode até achar isso normal, mas o fato é que sempre compro todos os presentes nas últimas 12 horas antes da festa. Agora você começa a perceber meu drama?

Schopenhauer disse certa vez que "viver é sofrer". Filósofo safado esse (sim, Schopenhauer não é marca de cerveja alemã). Depois o Freud viu a bola quicando e pegou de primeira, chute na veia, afirmando (mais ou menos assim) que o sentido de nossa vida é aliviar o sofrimento de procurar alívio. Pegando carona nos geniais batutinhas, vejo que minha ansiedade - cada vez maior - nada mais é que a manifestação desse sofrimento. E o natal só faz tudo piorar! Agora, vejo que minha ansiedade anda se alimentando das decorações natalinas, é um verdadeiro complô contra mim.

Lembro que antigamente as lojas, ruas, shoppings, enfim, todos os lugares começavam a se enfeitar com pinheirinhos, bolinhas, duendes, estrelas e o bom velhinho Noel no início de dezembro. Agora, ai ai ai, mal entra novembro e já está tudo coberto de neve. Um verdadeiro festival de inverno em tudo quanto é canto, como se precisássemos nos preparar psicologicamente para enfrentar o natal. Mas a festa é só daqui dois meses? E daí, já vamos esquentar os motores, vai que o povo esquece e resolve lembrar um dia antes, né? E foi assim que caí na armadilha, vejo aquilo tudo e acabo gastando dinheiro antes da hora, vivendo o natal por antecipação e deixando minha ansiedade mais agitada do que detector de mentiras em Brasília.

Estranho, pois isso é um contraponto com a melancolia que toma conta da maioria das pessoas nessa época do ano. Esse papo de fraternidade e saudosismo cria uma certa letargia na galera, realmente o povo fica estranho. Inconsciente coletivo, que leva o pseudônimo de "espírito natalino". Não que isso seja ruim, muito pelo contrário, sinto que as pessoas ficam mais calmas e caridosas. Eu até sinto aquela coisa no peito, um suspiro diferente, me encanto com as luzes, me sinto realizado em ir até o Bank Boston da Paulista (pelo menos uma vez no ano, pois dinheiro que é bom, nada), etc e tal. Mas no fundo tudo é comércio, tudo é business, tudo é sobrevivência. No money, no game. O espírito natalino morre no dia 26 e vira cada um por si de novo. Basta ver que a próxima festa, reveillon, é uma grande putaria (no bom sentido, sempre).

Se a cada momento de pseudo-união entre as pessoas ficasse sempre uma sementinha do quanto é bom respeitar o outro e ajudar, a coisa toda do natal valeria muito mais a pena. Não estou pregando o "seja bonzinho", é apenas uma constatação de que se viver é sofrer, é preciso amenizar esse sofrimento (principalmente minha ansiedade!), estender a mão com força e vontade, para depois receber a mão do outro também. Assim como o comércio do natal, ajudar e ser ajudado é uma questão de sobrevivência.

Feliz natal e até semana que vem.


Meu amigo Woody - João Pereira Coutinho

Atenção, críticos. Eu tenho três palavras para vocês. Não. Sejam. Ridículos. Será preciso repetir? Falo em defesa de Woody, meu amigo Woody Allen, que há trinta anos --bom, há uns vinte-- vive cá em casa, na melhor estante do meu coração. E se vocês acham que estou sendo piegas ou sentimental ou excessivo, por favor, não tenham dúvidas: estou mesmo. E vou piorar.

Vocês conhecem a tese: Woody Allen começou o seu naufrágio em 2000, com "Small Time Crooks" (Trapaceiros). Continuou com "The Curse of the Jade Scorpian" (O Escorpião de Jade), "Hollywood Ending" (Dirigindo no Escuro), "Anything Else" (Igual a Tudo na Vida) e "Melinda e Melinda". Cinco filmes, cinco desastres de bilheteria. E os sábios deste mundo declarando a certidão de óbito. Woody está morto. Woody repete-se. Woody perdeu a graça. Woody perdeu a criatividade. Woody cansa. Ah, Deus, como eu gostava de aparecer na casa destes críticos e, com um bastão de beisebol, tratar do assunto com os meus vagares. Mas depois imagino que os críticos têm filmes de Cameron Crowe na sala --"Vanilla Sky", "Elizabethtown"-- e uma compaixão súbita apodera-se de mim. Tudo bem. Se eles querem lixo, eles que comam lixo.

O pior é que Woody acredita nos críticos. Ele diz que não lê --mas, acreditem, ele lê. Aparece aqui em casa, uma lágrima rolando por detrás dos óculos grossos, o tweed encharcado pela chuva que cai. "Eu não presto, Coutinho. Nunca serei um Fellini, um Bergman." Pobrezinho. Encomendo o jantar no chinês aqui do bairro e depois, ao som de Harry James, inicio o tratamento. Woody, senta aí.

O tratamento começa com uma revisão da matéria dada. Em quarenta anos de filmes, não existe um único --eu vou repetir, para vocês aí atrás: em quarenta anos de filmes, não existe um único que seja realmente mau. No próximo número de dezembro da revista "Vanity Fair", Peter Biskind, provavelmente um dos poucos críticos que respeito depois da morte de Pauline Kael, concorda comigo --ou, tudo bem, eu concordo com ele, não vou discutir quem é ovo ou galinha (mas eu pensei primeiro, Peter). Podemos não gostar de "Melinda e Melinda", um dos mais fracos da colheita. Mas "Melinda e Melinda", história contada em duas versões, como comédia ou como farsa, por grupo de amigos numa mesa de restaurante, revela um virtuosismo narrativo e cinematográfico que não se encontra na esmagadora maioria dos vagabundos que fazem filmes em Hollywood. Eu, pelo menos, não encontro --e confesso que só David Lynch e Clint Eastwood me obrigam a sair de casa com uma regularidade sazonal. (Scorsese? Depende. Muito.)

E os outros? "Igual a Tudo na Vida" dá para os gastos, sim. "Dirigindo no Escuro", história do diretor que fica cego e disfarça o problema para não ser despedido, é Howard Hawks vintage, sim. E com bónus: o filme do diretor cego acaba por ser um desastre, claro, mas os franceses elogiam. Touché. É o melhor comentário à cultura francesa atual. Sem falar dos diálogos. Os diálogos destes cinco --de todos os cinco, sem exceção-- são um prazer intelectual para mentes civilizadas: um sarcasmo blasé temperado pelo espírito de Nova York que Woody Allen criou e recriou.

(Esclarecimento: a Nova York que vocês imaginam que existe, na verdade, não existe. Só nos filmes de Woody, que praticamente sublimou a cidade --uma cidade invulgarmente desumana e agressiva-- a golpes de ternura.)

Mas o tratamento não acaba aqui. Peter Biskind escreve, e com razão, que os grandes diretores da história deixaram dois ou três filmes que fizeram o nome e a fama. Bognadovich dirigiu "A Última Sessão de Cinema" e "Lua de Papel" (pessoalmente, mais o primeiro que o segundo). Aconteceu na década de 70 e não voltou a acontecer mais. Mesmo Truffaut, um dos raros "nouvelle vague" que sobreviveu ao tempo, deixou "Os Incompreendidos", "Jules et Jim" e "Tirez sur le Pianiste" --na década de 60. Incluir "A Noite Americana", eu entendo, mas só por nostalgia. Truffaut deixou três filmes e, depois dos três, partiu para parte incerta. O mesmo para Orson Welles, que deixou quatro. Ou Coppola, que deixou três. Ou Cimino, que deixou um. Bertolucci, exatamente, nenhum.

Woody Allen não deixou dois. Não deixou três. Biskind arrisca 10: "Annie Hall", "Manhattan", "A Rosa Púrpura do Cairo", "Broadway Danny Rose", "Zelig", "Hannah e Suas Irmãs", "Crimes e Pecados", "Maridos e Esposas", "Tiros na Broadway" e "Desconstruindo Harry". Eu arrisco 12: todos esses dez e ainda "Love and Death" (A Última Noite de Boris Grushenko) e "Another Woman" (A Outra0, o filme que Cassavetes gostaria de ter feito com a mesma mulher (que, por acaso, até era a dele: Gena Rowlands, meu amor). E se falamos de obras-primas --definição de obra-prima, por J.P. Coutinho: objeto artístico que Deus, no Dia do Apocalipse, irá poupar na sua infinita misericórida para que os novos hominídeos não se sintam sozinhos na Terra (lembrar início de "2001", de Kubrick) --se falamos de obras-primas, dizia eu, bastariam três. "Hannah e Suas Irmãs", "Crimes e Pecados" e "Desconstruindo Harry".

"Hannah" é o mais solar dos filmes de Allen e mesmo nos meus piores dias --uns vinte e cinco todos os meses-- a história de Mickey, o hipocondríaco que recupera a fé com um filme dos irmãos Marx, é a única ressurreição laica que me comove. Mas não é apenas uma ressurreição. É uma resposta: a mais simples e bela resposta do cinema moderno. Podemos não encontrar um sentido de vida, um sentido para a vida, o caminho célere para a felicidade ideal, como as teologias descartáveis prometem de porta em porta. Mas existem pequenas ilhas de felicidade, por onde vamos saltitando como náufragos perdidos. São estas ilhas que dão alento no caos que nos consome. O rosto de Mariel Hemingway em "Manhattan" --ou o rosto da pessoa que amamos, tanto faz. Os discos de Django Reinhardt em "Poucas e Boas" --ou os discos que fazem a trilha sonora das nossas vidas, tanto faz. E, como nesse "Hannah" que me deixa num estado de felicidade irreal, os poemas de e.e. cummings que descobri devido ao filme. Ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão generosas como Woody.

Generosas e sublimes, se por sublime entendermos tudo aquilo que aterroriza o fundo mais fundo das nossas certezas. E se Dostoievski estiver errado? E se o crime não implica necessariamente um castigo? E se a "consciência", como Nietzsche afirmava, é um anacronismo da civilização judaico-cristã para aprisionar os homens num mundo sem Deus? "Crimes e Pecados" é um anti-Dostoievski por excelência. Imagino título de primeira página: "Amante mata amante". E o lead: "Mas descobre que o ato não pesa na consciência". Assustados? Eu fiquei. Quando assisti pela primeira vez a "Crimes e Pecados", senti todas as certezas a ruir com o passar do filme. A minha alma é como o rosto de Martin Landau: consumida pela culpa, no início; liberta de qualquer culpa, no final. Ou quase. A natureza subversiva do filme é a única culpa a que não podemos escapar.

E "Descontruindo Harry"? É um afago na minha consciência e, suspeito, na consciência de todos aqueles que vivem das suas criações. Harry Block, belo nome, tem bloqueio criativo. Tragédia inevitável, quando sacrificamos tudo em volta pelo amor à arte --neste caso, à nossa. Mas Woody apresenta um paradoxal otimismo: se a arte nos alienou da vida, é a própria arte que nos devolve à vida. Sobretudo quando todos os personagens do escritor aparecem em homenagem final. Aplausos --deles e nossos. Quem diria, camarada. Quem diria que as nossas ficções, às vezes, são formas perfeitas de salvar a realidade.

Nem mais. Todos os anos, com a regularidade das aves, Woody regressa. Nós devemos regressar a ele com um sorriso grato e íntimo. Porque os filmes de Woody Allen são gratos e íntimos: nós entramos na sala, sentamos na mesa e ele vai servindo o jantar. Conhecemos todos os comensais. Sabemos que a comida não se altera com os anos: sal a menos, sal a mais --o cozinheiro é o mesmo. Os filmes de Woody Allen são uma família a que se pertence: ninguém deseja mudanças radicais ou desaparecimentos radicais. Desejamos apenas que seja outono lá fora e que as histórias, conhecidas e até repetidas, sejam embaladas por um fio de jazz
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