O joio e o trigo*


Passei a vida reproduzindo ditados populares sem necessariamente buscar suas origens. Um exemplo foi a ampla utilização da expressão “cuspido e escarrado” como algo que fazia sentido. Assim que descobri o “esculpido em Carrara”, resolvi restringir o termo porque o mármore italiano dá a ideia das formas de Davi, de Michelangelo. Quando se é cuspido e escarrado, você pode ser feio que nem o outro. 

Separar o joio do trigo é algo sempre fiz considerando o joio e o trigo como antagonistas: o bem e o mal, a salsinha e o coentro, o All Star e o sapatênis, o Mujica e o Trump.  Conheço bem a gramínea das mais cultivadas no planeta, que dá origem ao pão, à cerveja encorpada e também ao pesadelo de muita gente que a associa ao glúten, o vilão das dietas atuais. 

Ao buscar a imagem do joio no Google, percebi que era impossível diferenciá-lo do trigo num primeiro momento. Caí na parábola da Bíblia - sim, eu faltei a muitas aulas de religião – e fiquei me perguntando o que faz uma criatura se infiltrar numa plantação de madrugada somente para misturar ao que estava semeado aquilo que não prestava? O período de amadurecimento seria a única solução para a depuração. 

Quando alguém planta algo improdutivo em nossa vida, nem sempre a percepção é imediata. A qualquer minuto, o amor acaba. O mesmo acontece com a amizade, por mais que idealizemos ainda mais esse sentimento. Ficou o amargor e também o sentimento espera por uma outras colheita. Em muitos momentos, contemplei aquela plantação imaginária e tentei me lembrar a hora exata em que que cochilei. Pacientemente, troquei a mágoa pela resiliência. Não foi nada fácil. 

As oportunidades se abriram porque escolhi não me fechar para o novo e porque essa motivação de separar joio do trigo pode, equivocadamente, jogar fora aquilo que não se recupera mais. Como na poesia de Filipa Real, “pelo sim, pelo não vou regando também as plantas falsas”. Assim, eu passei a dormir relativamente tranquila, sem me preocupar em vigiar o trigo. Pode haver o joio, pode haver o sol em excesso, pode haver a tempestade e pode haver a ventania. Vivo, felizmente, a constante impossibilidade do controle. 

*Crônica produzida para a oficina da Ivana Arruda Leite na Escrevedeira



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